quarta-feira, 14 de março de 2007

Carta aos alephianos

Queridos amigos das linhas

Tivesse eu registrado uma palavra a cada encontro, ainda assim não teria hoje a soma dos mistérios e encantos que me ofertaram. Do estranhamento dos olhares e das idéias, à feliz descoberta dos afetos, é única e grata a presença de cada um, ao seu modo e letra, no grupo e em mim. Pensando no que escrever para vocês, encontrei em Norberto Bobbio a definição do que para mim representam nossos encontros, um espaço “para refletir mais uma vez sobre a variedade de nossos sentimentos em relação à vida no pluriverso de valores contraditórios em que nos movemos e, portanto, sobre a dificuldade de compreender o mundo e, dentro do mundo, a nós mesmos”. Poderia seguir pedindo a outros autores que definissem, por prosa ou poesia, a experiência desse nosso conviver literário, mas como para coisas novas é preciso palavras novas, arrisco-me a capturar pela escrita as marcas deixadas por vocês ao vento da memória.
Inicio por um olímpico personagem, presença tão vívida e surpreendente que a nós mesmos surpreendeu com sugestões inusitadas. Guaraci, sempre disposto a encontrar novos caminhos, se maravilhava diante de autores e livros, não recuando nem mesmo diante de obscuras e difíceis palavras, ao contrário, contradiz Valéry, acreditando que tudo o que existe – em bons livros – passou primeiro pela vida e nela pode ser reencontrado. E não foi sem a doçura dos pés-de-moleque e do bolo de beterrada que nos acompanhou neste caminho. Presenteou-nos com as visitas da Haydée e com sua disposição tranqüila mostrou que mesmo num “suadouro emocional” vale a máxima: “Perhaps love is like a resting place / A shelter from the storm”.
Como não pode deixar de ser todo caminho que se pretenda travessia, é prudente levar sempre um vidrinho com álcool e alfazema, que se faz em casa e serve para espantar mosquito perfumando a pele, que é a alma vestida de tempo deste germânico-mineiro Fernando. Com ele não se aprende só a tirar a dor do corpo que, doido, sobrevive à luta, aprende-se a fazer pão integral com massa amassada por Marina, Arthur, Matias e Lylian. Aprende-se a plantar acerola e esperar 12 anos para que ela dê frutos, assim como a achar estrela no céu e ser feliz na terra. Deus e o demo, se existe, sei não. Existe é homem humano, que reclama de imperialismos e totalitarismos de toda espécie, acredita em animais marinhos semelhantes a polvos e que seus tentáculos sejam honestos... Acredita que da pedra, escondida, sai uma forma, e não se satisfaz com significados comuns, mas os persegue por longos plásticos pretos, num negativo de negra floresta.
Assim como ele, há outra que recolhe as sementes do chão pisado e, esteja no Egito ou em Tiradentes, liga pros filhos para saber se querem pastel de frango ou de carne. Angélica, também apelidada Harmonia, nos lembrou da música com Verônica, dos mitos indígenas com Jalousie, e das nossas viagens ainda irrealizadas. Traduz a vida em Antroposofia e esta, para nós, na poesia de seu jeito simples e de suas observações filo-angélicas. Não gosta de Sônias nem Macabéias, mas sabe encontrar em biografias o sentido das vidas, e com humildade se reconhece tendo sido tanto quanto se pôde ser – humana.
De outra forma é Paulo, tão contido e polido que só se deixa apressar pelas palavras que precisam ser ditas. Leitor refinado, percorre áfricas e brasis, em linhas e pés deslumbrados com tanto mundo. Mundo que, entre esquerda e direita, paira às vezes numa terceira margem. Olha, relembra, deslembra. Fica nas fotos e nos sapatos e o deixa outro, do mesmo que o acompanha. Já não é um, são dois e muitos: o que rubra diante do vinho; o que não resiste a um trocadilho; o que se torna mestre das palavras para submeter-se a elas com novo fôlego; o que não gosta de números e aparelhos eletrônicos, mas empenha-se em ser um bom decifrador de si mesmo.
Há Leonardo, para quem minhas palavras se engasgam e roseiam. Hercúleo, conversa com os olhos e passa a noite num diálogo secular. Entre seus interlocutores: Montaigne, Maquiavel e Borges. Durante um único dia quer ser tudo: no olhar do pássaro é o biólogo; na terra distante o arqueólogo e o antropólogo; nas letras sagradamente escondidas o escritor. Nos intervalos é o que se preocupa se todos chegaram bem em casa e se todas as flores chegarão aos seus respectivos aniversariantes. Rigoroso e de risada larga, quer levar todo mundo em Ibitipoca, contanto que não saia nas fotos. Raramente cede aos temperos e preparos dos amigos, mas se nutre da presença e da lembrança de cada um. E se o Guaraci tiver razão quanto ao divino papel ocupado pelo sal na vida dos amigos, Leonardo o comprovará: usa-o para acompanhar seu prato preferido – o azeite, assim como para estancar o sangue dos machucados.
Há a tranqüilidade e o acanhamento da Rose, que foge de espelhos mas faz o melhor pudim de nozes “deste país”. Nela o gosto pelas palavras simples, que brincam como crianças e como ela própria, quando fala e se faz em sua pedagogia. Ensina a fazer quentão sem álcool e aprende a ler poesia. Graças a ela chegou até nós a Márcia, tão acanhada que quando sem a companhia da Rose, nos deixa a todos desacompanhados. Quando está conosco nos encanta, principalmente quando se rende e nos oferece também suas leituras de mundo que, longe de serem somente contábeis, nos mostram sua discrição e gentileza.
De tantos os nomes e presenças que desde 2002 estiveram conosco, muitas são as lembranças que ficaram: a lista amarela no asfalto de Júlio, que só deixa de ser bela diante da Isabela; o modo de falar da Luciana que sempre me divertiu; o jeito entusiasta do Paulo Henrique que, de tão mineiro, acredita que ainda estamos em Manchester; a simplicidade da Sílvia e sua comida caprichosa; todas as cores da Thaisy, do cabelo à geladeira, em sua casa multicor; a dentista atriz Daniela; a voz de contadora de histórias da Lili e as risadas da Agna; a Érica, eterna contadora de causos nos quais, às vezes, ela própria divertidamente se deixava perder. Inteligente e perspicaz foi “mezclar-se” a outras pessoas. Assim também foi Estevam, nosso aedo-historiador. Cantou-nos em vento e prosa, até retornar à sua Ítaca pernambucana.
Mais recentemente recebemos duas irmãs: Janine que chegou falante e animada. Gosta de fotos e posses, e entre um bolinho e outro, nos oferece sua perspectiva psicanalítica entretecida nos textos. Tamires tem sido uma presença também recente e querida, que pode também ser encontrada nas filas dos supermercados. Junto da imponente figura de Ramses.
A Dani, minha companheira acadêmica, está chegando timidamente. Foi uma das melhores surpresas até aqui, pois não foi preciso repetir o convite. Ao saber dos nossos encontros, imediatamente se preparou para a jornada e está aqui a nos acompanhar.
Ainda pouco conhecidos mas imensamente agradáveis são Fabrício e Laura, cantor e contadora de histórias. Ainda não descobri se é mais prazeroso vê-los no palco ou tê-los à mesa, mas de toda forma espero termos cada vez mais motivos para continuarmos dividindo palavras do mundo e músicas de Minas.
Com todos vocês, há mais ou menos tempo, tive motivos para lembrar e linhas que me ajudaram a tecer os melhores sentidos de cada texto e tão boas descobertas de mim mesma. Para descrever isso não se pode usar somente palavras, mas que estas sejam um rascunho da alegria que encontro na companhia de vocês.

Com carinho,
Cíntia.

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